CPR Verde: Novidade ou nada disso?

Foi publicado nesta segunda-feira, 4 de outubro, o Decreto Federal 10.828/2021, que “regulamenta a emissão de Cédula de Produto Rural relacionada às atividades de conservação e recuperação de florestas nativas e de seus biomas”, sendo então uma Cédula de Produto Rural (CPR) Verde. Dentro das iniciativas de Jair Bolsonaro para os 1000 dias de mandato, o decreto foi assinado na última sexta-feira, dia 1º de outubro, com a presença dos ministros Joaquim Leite (Meio Ambiente) e Paulo Guedes (Economia).

Nas palavras do ministro Joaquim Leite: “Conseguimos desenhar uma CPR Verde que vai trazer mais uma possibilidade para o produtor rural antecipar recursos de serviços ambientais. Serviços ambientais que serão lastreados no estoque de carbono da vegetação nativa, na absorção de credito de carbono durante a produção agropecuária e, por último, em outros benefícios ecossistêmicos.” Contudo, será que o decreto de hoje reflete essa fala?

O seu lançamento já havia sido noticiado pela imprensa, que destacou que o CPR Verde estava em construção desde o início de 2021 numa articulação entre Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), Ministério da Agricultura (ME), Banco Central e Ministério do Meio Ambiente (MMA). Ainda, a CPR Verde é um dos produtos que o Governo Federal pretende levar à COP 26.

Cabe ressaltar que o Governo Federal está preparando um pacote de medidas para o chamado “Programa de Crescimento Verde”, tendo sido noticiado que a CPR Verde era um dos itens deste “pacote”.

A Cédula de Produto Rural (CPR) já existe e foi instituída pela Lei Federal 8.929/1994, sendo “representativa de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas” (art. 1º, caput, Lei Federal 8.929/1994) e também sendo “considerada ativo financeiro, para os fins de registro e de depósito em entidades autorizadas pelo Banco Central do Brasil a exercer tais atividades” (art. 3º-A, §4º, Lei Federal 8.929/1994). A norma foi alterada pela Lei Federal 13.986/2020, tendo sido incluídos diversos dispositivos. Sistematizamos o que há de principal quanto à CPR:

 

PRESSUPOSTOENQUADRAMENTOS
Cédula de Produto Rural (CPR)Título de promessa de entrega de produtos rurais, com ou sem garantias cedularmente constituídas.
Produtos rurais(i) agrícola, pecuária, de floresta plantada e de pesca e aquicultura, seus derivados, subprodutos e resíduos de valor econômico, inclusive quando submetidos a beneficiamento ou a primeira industrialização; (ii) relacionadas à conservação de florestas nativas e dos respectivos biomas e ao manejo de florestas nativas no âmbito do programa de concessão de florestas públicas, ou obtidos em outras atividades florestais que vierem a ser definidas pelo Poder Executivo como ambientalmente sustentáveis.
Legitimação para emitir CPR
Obs: O Poder Executivo pode alterar o rol dos emissores de CPR.
(i) produtor rural; (ii) pessoa natural ou jurídica, inclusive aquela com objeto social que compreenda em caráter não exclusivo a produção rural; (iii) cooperativa agropecuária e a associação de produtores rurais que tenha por objeto a produção, a comercialização e a industrialização dos produtos rurais; (iv) pessoas naturais ou jurídicas que explorem floresta nativa ou plantada ou que beneficiem ou promovam a primeira industrialização dos produtos rurais.
O que deve constar na CPR
Obs: Sem caráter de requisito essencial, a CPR poderá conter outras cláusulas lançadas em seu contexto.
(i) denominação “Cédula de Produto Rural” ou “Cédula de Produto Rural com Liquidação Financeira”, conforme o caso; (ii) data da entrega ou vencimento e, se for o caso, cronograma de liquidação; (iii) nome e qualificação do credor e cláusula à ordem; (iv) promessa pura e simples de entrega do produto, sua indicação e as especificações de qualidade, de quantidade e do local onde será desenvolvido o produto rural; (v) local e condições da entrega; (vi) descrição dos bens cedularmente vinculados em garantia, com nome e qualificação dos seus proprietários e nome e qualificação dos garantidores fidejussórios; (vii) data e lugar da emissão; (viii) nome, qualificação e assinatura do emitente e dos garantidores, que poderá ser feita de forma eletrônica; (ix) forma e condição de liquidação; (x) critérios adotados para obtenção do valor de liquidação da cédula.
Formas de emissão da CPR
Obs: A CPR poderá ser aditada, ratificada e retificada por aditivos.
(i) Cartular; (ii) Escritural.
Competências Banco Central do Brasil(i) estabelecer as condições para o exercício da atividade de escrituração; (ii) autorizar e supervisionar o exercício da atividade de escrituração.
Competências Conselho Monetário Nacional(i) estabelecer normas complementares para o cumprimento do disposto no caput do art. 12 (registro ou depósito em até 10 dias úteis, em entidade autorizada pelo Banco Central, da CPR emitida a partir de 01 de janeiro de 2021 e seus aditamentos), inclusive acerca das informações requeridas para o registro ou o depósito; (ii) dispensar o registro ou o depósito previsto no caput do art. 12 com base em critérios de valor, forma de liquidação e características do emissor.

 

 

Essas são as disposições gerais em relação à CPR. Contudo, ficam algumas dúvidas quanto à CPR Verde.

  1. Afinal, o que diz o Decreto Federal 10.828/2021?
    O decreto traz pouquíssimas informações. Vejamos:
    • Estabelece que o decreto regulamenta a emissão de CPR que esteja relacionada às atividades de conservação e recuperação de florestas nativas e de seus biomas;
    • Autoriza a emissão de CPR para os produtos rurais obtidos por meio das atividades relacionadas à conservação e à recuperação de florestas nativa e de seus biomas que resultem em: (i) redução de emissões de gases de efeito estufa; (ii) manutenção ou aumento do estoque de carbono florestal; (iii) redução do desmatamento e da degradação de vegetação nativa; (iv) conservação da biodiversidade; (v) conservação dos recursos hídricos; (vi) conservação do solo; ou (vii) outros benefícios ecossistêmicos.
    • Estabelece que a CPR será acompanhada de certificação por terceira parte para indicação e especificação dos produtos rurais que a lastreiam.
  2. A CPR Verde deverá cumprir os termos da Lei Federal 8.929/1994 (e alterações realizadas em 2020)?
    Ao que parece, sim. O Decreto Federal 10.828/2021 deixa claro que é uma regulamentação do inciso II do § 2º do art. 1º da Lei Federal 8.929/1994, ou seja, é uma especificação de um ponto específico de norma que já existe, especificamente quanto aos produtos rurais de atividades “relacionadas à conservação de florestas nativas e dos respectivos biomas e ao manejo de florestas nativas no âmbito do programa de concessão de florestas públicas, ou obtidos em outras atividades florestais que vierem a ser definidas pelo Poder Executivo como ambientalmente sustentáveis”.

    Tal entendimento foi reiterado por componentes do Governo, conforme noticiado:

    • Peng Yaohao, coordenador-geral de Negócios Agroambientais da Secretaria de Política Econômica, afirmou: “A CPR Verde é acima de tudo uma CPR. Então se aplica tudo que se aplica ao instrumento Cédulas de Produto Rural (CPR). A segurança jurídica desse instrumento é garantido pelo Conselho Monetário Nacional, e esse decreto vem para listar quais são as modalidades de serviço ambiental que são elegíveis para emissão de CPR Verde” (destacamos);
    • Emmanuel Sousa de Abreu, subsecretário de Direito Econômico do Ministério da Economia, afirma: “A emissão segue o mesmo critério de emissão da CPR. Então os critérios são estabelecidos por lei, porque todo título de crédito tem que ter a força que estabelece os atributos. A necessidade de escrituração, é a mesma coisa. As condições da escrituração são dadas, os requisitos necessários devem ser seguidos para a CPR Verde, apenas a forma de verificação, que são atributos entre as partes, não é estabelecido pela lei nem pelo decreto, que podem ser flexibilizados. Mas os critérios de emissão de CPR são mantidos” (destacamos).

    Como se verifica, as CPRs do Decreto Federal 10.828/2021 são modalidades que reconhecem as atividades “verdes” no que tange os “produtos rurais” da Lei Federal 8.929/1994.

  3. A metodologia de funcionamento específico da CPR Verde está clara na legislação?
    Não. Tanto a Lei Federal 8.929/1994 quanto o Decreto Federal 10.828/2021 não deixam claro de que forma será operacionalizada a CPR Verde. A bem da verdade, informações mais detalhadas são externalizadas mais via imprensa do que efetivamente pelas normas.

    Segundo notícia do site do Governo Federal: “Com a Cédula, o produtor rural é estimulado a produzir ao mesmo tempo que preserva e passa a receber pagamento por serviços ambientais, alcançando assim uma renda extra. O instrumento permitirá que empresas interessadas em mitigar suas emissões de gases de efeito estufa, adquiram os títulos mediante o compromisso do produtor em manter a área conservada.” No entanto, essa forma de retribuição e conexão entre empresa e produtor não consta na norma de hoje.

    Temos, ainda, um fluxograma constante em uma apresentação e que, teoricamente, apresenta a forma como será a CPR Verde.

    Como exposto acima, alguns componentes do Governo Federal especificaram alguns pontos da CPR Verde, mas que não estão claros na norma publicada hoje. Como será a métrica de, por exemplo, redução de emissões de gases de efeito estufa? Como se verificará uma redução do desmatamento de vegetação nativa por simples aquisição de CPR Verde? Como será realizada a certificação por terceira parte? Haverá uma norma específica para a certificação? Deverão ser apresentados relatórios ou estudos que comprovem a manutenção da qualidade ambiental e dos compromissos vinculados à CPR Verde? De quanto em quanto tempo? Para quem? Sendo matérias ambientais e não somente de titulação, como fica a figura do Banco Central e do Conselho Monetário Nacional?

  4. A CPR Verde pode ser um bom negócio para os problemas ambientais e climáticos?
    Instrumentos de mercado devem ser devidamente parametrizados, coordenados, estudados, operacionalizados e possuírem metodologias, metas e ambições muito claras, sob o risco de se tornarem “letra morta”.

    Deve-se ter em mente que as normas relativas ao CPR (seja ela verde ou não) não trazem, por si só, uma segurança de que há realmente um mercado, objetivos, metas e resultados esperados. A bem da verdade, o evento de lançamento foi muito mais amplificado do que o conteúdo efetivo do decreto publicado hoje (com míseros 4 artigos e sem grandes avanços).

    Afinal, de que forma a CPR Verde ajudará nas mitigações de problemas e adaptações das atividades já existentes? O que o Brasil apresentará efetivamente em Glasgow, quando da COP 26? Da forma como está, não nos parece que a CPR Verde esteja madura e regrada suficientemente para demonstrar uma ambição ou melhora real da imagem do Brasil. Sequer está clara a forma de certificação por terceiros, algo somente citado en passant no Decreto Federal 10.828/2021.

    É de se ressaltar, também, que as CPRs Verdes podem ser modelos de Pagamento por Serviços Ambientais (PSA), especialmente se pensarmos que são modalidades (art. 3º, incisos I e III, Lei federal 14.119/2021) de PSA: (i) pagamento direto, monetário ou não monetário; e (ii) compensação vinculada a certificado de redução de emissões por desmatamento e degradação.

    Assim, haveria potencial da CPR Verde ser um “bom negócio” caso tivéssemos regras claras, metodologias fortes, ambições/metas robustas e compromisso efetivo em deixar tudo às claras e formalizado via legislação de base. Da forma como está, a CPR Verde pode ser mais um programa de papel, sem transparência nem participação social que “não pegou” ou programa “para inglês ver”, a exemplo do Programa Adote um Parque e Floresta+ e seus subitens como Floresta+Carbono; Floresta+Amazônia etc.

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